VOTOS VÁLIDOS NÃO CONVERTIDOS EM MANDATOS

Uma questão circular

por Luís Humberto Teixeira

Em todas as eleições, há uma percentagem da votação que é composta por votos válidos não convertidos em mandatos, aos quais se têm atribuído designações tão variadas como “votos desperdiçados”, “votos ignorados”, “votos inúteis” ou “votos válidos em vão”.

Em média, cerca de meio milhão de votos válidos não são convertidos em mandatos a cada eleição legislativa. A existência de muitos círculos de pequena dimensão é uma das principais responsáveis pela situação.

Na Tabela 1, vemos a evolução destes votos desde 1975, que teve como ponto máximo a eleição de 2019, na qual 719.929 votos válidos não elegeram qualquer deputado, correspondendo a mais de 14% dos votos em partidos (cerca de 1 em cada 7 votantes).

Tabela 1 - Votos não convertidos em cada eleição (1975-2019)
EleiçãoVotos não convertidos% do total de votos válidos
1975579.80410,91%
1976464.1408,88%
1979427.7837,32%
1980408.2256,93%
1983334.1046,01%
1985421.6347,46%
1987562.93010,14%
1991492.2198,75%
1995399.2186,89%
1999385.6107,27%
2002395.3437,37%
2005504.7759,05%
2009462.4828,40%
2011512.2479,56%
2015529.82010,18%
2019719.92914,45%

Mas esta ausência de conversão dos votos em mandatos não atinge todos os partidos de igual modo. Em 2019, o PS saiu claramente beneficiado, enquanto todos os outros, sobretudo os partidos médios que formaram grupo parlamentar (CDS-PP, PCP-PEV, BE e PAN), foram bastante prejudicados, como se vê na Tabela 2.

De notar que, embora o PSD tenha tido mais de 30 mil votos não convertidos em mandatos, isso apenas representou 2,19% da votação total do partido, tornando-o no segundo partido menos prejudicado percentualmente, apenas atrás do PS.

Tabela 2 - Votos absolutos não convertidos em mandatos
PartidoVotos não convertidos em mandatos% face ao total de votos no partido% do total de votos não convertidos
CDS-PP102.36946,30%14,22%
PCP-PEV94.74628,54%13,16%
BE88.12517,68%12,24%
PAN75.64243,49%10,51%
Chega45.47467,37%6,32%
IL40.35359,83%5,61%
Aliança40.175100%5,58%
PCTP/MRPP36.006100%5%
RIR35.169100%4,89%
Livre34.20260,07%4,75%
PPD/PSD31.8562,19%4,42%
PNR16.992100%2,36%
MPT12.888100%1,79%
NC12.346100%1,71%
PDR11.674100%1,62%
PURP11.457100%1,59%
JPP10.552100%1,47%
PPM8.389100%1,17%
PTP8.271100%1,15%
MAS3.243100%0,45%
PS00%0%

Quando procuramos explicações para estes resultados, há uma variável que salta imediatamente à vista: a dimensão dos círculos eleitorais, como se pode comprovar na Tabela 3, relativa às Legislativas 2019. Com efeito, os cinco círculos com menor percentagem de votos não convertidos em mandatos são os que mais deputados elegem e, no extremo oposto, estão aqueles que menos deputados elegem.

Tabela 3 - Votos não convertidos por círculo (2019)
CírculoVotos válidos não convertidos em mandatos% face ao total de votos válidos no círculo
Portalegre26.38753,41%
Évora28.94340,60%
Europa27.85535,04%
Fora da Europa14.22034,84%
Beja20.99133,96%
Castelo Branco26.24029,41%
Viana do Castelo32.51428%
Madeira35.22927,75%
Faro39.69525,16%
Açores19.55424,98%
Viseu41.74624,71%
Guarda17.44024,03%
Leiria44.05121,38%
Vila Real19.12620,01%
Bragança11.68019,20%
Coimbra36.57918,93%
Santarém31.10715,80%
Braga54.30812,25%
Aveiro41.07512,25%
Setúbal43.90811,53%
Porto61.3496,83%
Lisboa45.9324,33%

Quer falemos de círculos ou de partidos, uma análise longitudinal confirma esta tendência do sistema para favorecer os grandes, como se pode ver no gráfico abaixo.

Em conjunto, PSD e PS nunca atingiram 9% do total dos votos não convertidos, ficando por sete vezes (em 16 eleições) abaixo de 1%. Já o grupo dos restantes partidos com presença parlamentar chegou a representar mais de dois terços do total de votos não convertidos, nas eleições de 1999, 2002, 2005 e 2019.

Em termos absolutos, as conclusões são, obviamente, similares: na conversão de votos em mandatos, os dois maiores partidos nunca tiveram mais de 50 mil votos desperdiçados, enquanto as forças de média dimensão só em duas ocasiões (1980 e 1983) ficaram abaixo dos 200 mil votos ignorados e, nas eleições de 1975, 1987 e 2005, ficaram acima dos 300 mil. Em 2019 tiveram quase meio milhão (480.911) à sua conta!

Quanto aos círculos, por norma quanto menor a sua dimensão, maior a percentagem de votos válidos não convertidos em mandatos.

Assim, se queremos manter a proporcionalidade e o pluralismo, a solução é reduzir drasticamente o número de círculos eleitorais, aumentando a sua dimensão média.
Como isso pode originar acusações de manipulação dos limites para favorecer o partido A ou B, a melhor forma de o evitar é optar por uma destas três soluções:

• Criar um círculo eleitoral único, à semelhança do que existe na Região Autónoma da Madeira;
• Criar um círculo de compensação, à semelhança do que existe na Região Autónoma dos Açores;
• Utilizar as NUTS II e as Áreas Metropolitanas como círculos eleitorais.

Propostas como a dos círculos uninominais – nos quais apenas um mandato é atribuído – não são uma solução viável para este problema porque:
a) contribuem para aumentar os votos válidos não convertidos em mandatos, caso os padrões de voto se mantenham inalterados; ou
b) diminuem o pluralismo na Assembleia da República, caso os eleitores abandonem um padrão de voto sincero e optem por um voto estratégico ou “útil”.

Votos válidos não convertidos em mandatos por tipo de partido (1975-2019)

Como interpretar este gráfico:

Cada “faixa tricolor” desde o centro do disco representa uma eleição. A primeira é a de 1975, a segunda a de 1976 e por aí adiante, até chegar a 2019.

A primeira cor (tijolo) identifica o grupo dos Grandes, formado por PPD/PSD, PS e respetivas alianças e frentes eleitorais (AD em 1979 e 1980, FRS em 1980 e PàF em 2015).

A segunda cor (amarelo torrado) é o grupo dos Médios, ou seja, as forças que elegeram deputados na eleição em causa (à exceção das incluídas no grupo dos Partidos Grandes), a saber: o CDS-PP (em listas próprias), o PCP e as suas frentes eleitorais (a solo em 1975 e 1976, APU entre 1979 e 1985, e CDU desde 1987), o BE (desde 1999), a UDP (1975, 1976 e 1979), a ADIM (1975), o MDP (1975), o PRD (1985 e 1987), o PSN (1991), o PAN (2015 e 2019), o Chega, a IL e o Livre (os três em 2019).

A terceira cor (verde) é a do grupo dos Pequenos, composto pelos partidos e coligações que não elegeram deputados nessa eleição.

No gráfico, é evidente o fraco peso percentual do grupo dos Grandes no total de votos não convertidos em mandatos. Ao longo das 16 eleições realizadas entre 1975 e 2019, ele variou entre 0,3% (2015) e 8,86% (2005).

Já os Médios oscilaram entre 36,12% (1983) e 73,32% (2002), e lideraram as não conversões em 11 das 16 eleições realizadas, razão pela qual podemos considerar que são, por norma, os mais prejudicados.

O grupo dos Pequenos apresenta resultados entre 21,41% (2002) e 62,38% (1980). Só foram os principais responsáveis pelos votos não convertidos em mandatos em 1976, 1979, 1980, 1983 e 2015.

O facto de a ordem destes três tipos de partido se repetir com bastante regularidade (Médios > Pequenos > Grandes, com estes últimos a terem uma presença muitas vezes ínfima) fez-nos pensar que esta era a típica situação de “Vira o disco e toca o mesmo”, donde a opção de apresentar estes dados longitudinais como um disco de vinil.